DeletedUser
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Sei que me ouves.
Sentei-me à janela e fiquei a ver o que passava na rua. Aquele desconforto começava a atenuar mas sentia cada vez menos a ponta dos dedos, em parte devido ao álcool ingerido, em parte devido à solidão que as paredes transpareciam e que me penetrava até ao limite suportável humanamente. Sentia o aroma a mudança no ar, precisava de sair dali rapidamente, iria haver mudança. Lembro-me de pensar como era bom a era dos 6 anos. Toda aquela alegria ao nascer de cada novo dia, o sorriso – oh, o sorriso era constante e ofuscante como só o pode ser aos 6 anos – os pequenos braços abraçavam o Mundo e mais houvesse que tornar-se-ia possível faze-lo.
Pouco depois o sorriso era, somente, um esboço. Maldito sejas. Nessa altura pensaram que seriam coisas da idade, como se a idade fosse, por si só, uma justificação para todas as mudanças de personalidade.
Nesse período, sentava-me no baloiço do jardim ao anoitecer e lá queria estar, agora. A brisa nocturna sempre de embalou, tanto nessa altura, tanto na altura em que fugia de ti, como agora…
As mudanças nunca foram boas, não para mim. Ouvia as raparigas falar das alterações corporais com que estavam a ser contempladas, na época em que desfilavam pela massa popular permitindo que todos se apercebessem disso mesmo. Como era possível sentirem, uma pitada sequer, de orgulho nisso?!
A minha indumentária era inoportuna à sociedade em que, supostamente, estava inserida mas tão adequada à realidade que me prendia ao tormento continuo: vestia as calças de ganga de toda a semana, a camisola XL azul que estava pousada em cima da cama e, quando muito, alternava com a preta que estava dobrada e arrumada ao fundo do armário. A marginalização urbana deste facto era de uma crueldade evidente, no entanto as regras de boa educação impostas não deixavam espaço para um prolongamento agravado da situação. E era exactamente isso que esperava, era essa a minha esperança. Esperança de manter um perímetro de segurança mínimo, esperança de te repelir com o meu modo sujo, dentes amarelados e cabelo desalinhado. Maldito sejas, nem disso querias saber.
Pelos 16 anos ofereceste-me um vestido, que rasguei com as poucas forças que tinha, disseste que a minha beleza merecia melhor que as minhas velhas e sujas calças de ganga. Passados dois dias a médica da escola perguntou-me porque razão tinha eu todas aquelas nódoas negras e, nessa altura, pensei o quão bom era ela não poder ver as mazelas que transportava, diariamente, na alma. Lá se imaginava que a filha do Senhor Doutor Américo Ferraz pudesse carregar um pingo de desconforto que fosse? Nem pensar.
Descobri um novo refúgio: passear-me de rua em rua. No entanto, durante o dia teria de o fazer cabisbaixa, não me era suportável cruzar o olhar com a multidão que ecoava estridentemente na minha cabeça - aquelas risadas eram desprezíveis. Portanto, passava apressada nas horas de movimento e deixava-me pernoitar, em cada banco a respirar daquela brisa, ao anoitecer.
Numa dessas noites vislumbrei, pela primeira vez, o teu rosto e, sentindo-me como que abalada por uma congelação súbita, observei o teu sorriso. E mesmo agora, às 3:13 da manhã e passados todos estes anos, recordo cada traço desse momento e ainda sinto o arrepio pelo corpo.
E, sensivelmente, por essa altura as coisas acalmaram. Os passos pelo corredor não eram tão frequentes, a porta destrancada do meu quarto não era aberta a meio da noite, as nódoas negras de contestação estavam a sarar e não havia indícios de renovação, não para breve.
Podia baloiçar-me noite dentro, esperar novo deslumbramento contido ao ver-te e continuar a baloiçar-me até ao raiar do dia.
Nem sempre aparecias, é um dado certo, e quando o fazias vinhas acompanhado. Uma companhia diferente de todas as vezes, o mesmo sorriso de todas as vezes. Aos tropeções, saias do teu carro, tropeçavas mais um pouco, dirigindo-te à entrada de casa, enquanto a afortunada dessa noite te seguia os passos dando gargalhadas embriagadas.
Decorei todos os traços que me eram possíveis decorar àquela distância e com tão pouca luminosidade, mas sabia-os tão bem. Imaginei a tua voz vezes sem conta, concebi a tua personalidade carismática e formei o nosso diálogo repetidamente, aquele que teríamos quando acordasse na tua cabeceira. Tudo o que tinha perfeita consciência não se vir a tornar realidade.
No decorrer desses sete meses, chegou mesmo a haver uma altura em que pensei que tudo iria passar, tudo iria acabar mas, como em sonhos que idealizados, realizados e, repentinamente, se tornam mal sucedidos ao acordar do novo dia, não passavam de desejos profundos de libertação.
Sentei-me à janela e fiquei a ver o que passava na rua. Aquele desconforto começava a atenuar mas sentia cada vez menos a ponta dos dedos, em parte devido ao álcool ingerido, em parte devido à solidão que as paredes transpareciam e que me penetrava até ao limite suportável humanamente. Sentia o aroma a mudança no ar, precisava de sair dali rapidamente, iria haver mudança. Lembro-me de pensar como era bom a era dos 6 anos. Toda aquela alegria ao nascer de cada novo dia, o sorriso – oh, o sorriso era constante e ofuscante como só o pode ser aos 6 anos – os pequenos braços abraçavam o Mundo e mais houvesse que tornar-se-ia possível faze-lo.
Pouco depois o sorriso era, somente, um esboço. Maldito sejas. Nessa altura pensaram que seriam coisas da idade, como se a idade fosse, por si só, uma justificação para todas as mudanças de personalidade.
Nesse período, sentava-me no baloiço do jardim ao anoitecer e lá queria estar, agora. A brisa nocturna sempre de embalou, tanto nessa altura, tanto na altura em que fugia de ti, como agora…
As mudanças nunca foram boas, não para mim. Ouvia as raparigas falar das alterações corporais com que estavam a ser contempladas, na época em que desfilavam pela massa popular permitindo que todos se apercebessem disso mesmo. Como era possível sentirem, uma pitada sequer, de orgulho nisso?!
A minha indumentária era inoportuna à sociedade em que, supostamente, estava inserida mas tão adequada à realidade que me prendia ao tormento continuo: vestia as calças de ganga de toda a semana, a camisola XL azul que estava pousada em cima da cama e, quando muito, alternava com a preta que estava dobrada e arrumada ao fundo do armário. A marginalização urbana deste facto era de uma crueldade evidente, no entanto as regras de boa educação impostas não deixavam espaço para um prolongamento agravado da situação. E era exactamente isso que esperava, era essa a minha esperança. Esperança de manter um perímetro de segurança mínimo, esperança de te repelir com o meu modo sujo, dentes amarelados e cabelo desalinhado. Maldito sejas, nem disso querias saber.
(…)
Pelos 16 anos ofereceste-me um vestido, que rasguei com as poucas forças que tinha, disseste que a minha beleza merecia melhor que as minhas velhas e sujas calças de ganga. Passados dois dias a médica da escola perguntou-me porque razão tinha eu todas aquelas nódoas negras e, nessa altura, pensei o quão bom era ela não poder ver as mazelas que transportava, diariamente, na alma. Lá se imaginava que a filha do Senhor Doutor Américo Ferraz pudesse carregar um pingo de desconforto que fosse? Nem pensar.
(…)
Descobri um novo refúgio: passear-me de rua em rua. No entanto, durante o dia teria de o fazer cabisbaixa, não me era suportável cruzar o olhar com a multidão que ecoava estridentemente na minha cabeça - aquelas risadas eram desprezíveis. Portanto, passava apressada nas horas de movimento e deixava-me pernoitar, em cada banco a respirar daquela brisa, ao anoitecer.
Numa dessas noites vislumbrei, pela primeira vez, o teu rosto e, sentindo-me como que abalada por uma congelação súbita, observei o teu sorriso. E mesmo agora, às 3:13 da manhã e passados todos estes anos, recordo cada traço desse momento e ainda sinto o arrepio pelo corpo.
E, sensivelmente, por essa altura as coisas acalmaram. Os passos pelo corredor não eram tão frequentes, a porta destrancada do meu quarto não era aberta a meio da noite, as nódoas negras de contestação estavam a sarar e não havia indícios de renovação, não para breve.
Podia baloiçar-me noite dentro, esperar novo deslumbramento contido ao ver-te e continuar a baloiçar-me até ao raiar do dia.
Nem sempre aparecias, é um dado certo, e quando o fazias vinhas acompanhado. Uma companhia diferente de todas as vezes, o mesmo sorriso de todas as vezes. Aos tropeções, saias do teu carro, tropeçavas mais um pouco, dirigindo-te à entrada de casa, enquanto a afortunada dessa noite te seguia os passos dando gargalhadas embriagadas.
Decorei todos os traços que me eram possíveis decorar àquela distância e com tão pouca luminosidade, mas sabia-os tão bem. Imaginei a tua voz vezes sem conta, concebi a tua personalidade carismática e formei o nosso diálogo repetidamente, aquele que teríamos quando acordasse na tua cabeceira. Tudo o que tinha perfeita consciência não se vir a tornar realidade.
No decorrer desses sete meses, chegou mesmo a haver uma altura em que pensei que tudo iria passar, tudo iria acabar mas, como em sonhos que idealizados, realizados e, repentinamente, se tornam mal sucedidos ao acordar do novo dia, não passavam de desejos profundos de libertação.
(...)
Mais uma história para o fórum criticar e, desde já, peço desculpa por algum erro ortográfico que possam encontrar e pelo incorrecto uso da pontuação - que, garantidamente, irão encontrar - mas nós nunca nos demos muito bem
Mais uma história para o fórum criticar e, desde já, peço desculpa por algum erro ortográfico que possam encontrar e pelo incorrecto uso da pontuação - que, garantidamente, irão encontrar - mas nós nunca nos demos muito bem