'Início de nada'

  • Iniciador do tópico Stéphanie Marie
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Sei que me ouves.
Sentei-me à janela e fiquei a ver o que passava na rua. Aquele desconforto começava a atenuar mas sentia cada vez menos a ponta dos dedos, em parte devido ao álcool ingerido, em parte devido à solidão que as paredes transpareciam e que me penetrava até ao limite suportável humanamente. Sentia o aroma a mudança no ar, precisava de sair dali rapidamente, iria haver mudança. Lembro-me de pensar como era bom a era dos 6 anos. Toda aquela alegria ao nascer de cada novo dia, o sorriso – oh, o sorriso era constante e ofuscante como só o pode ser aos 6 anos – os pequenos braços abraçavam o Mundo e mais houvesse que tornar-se-ia possível faze-lo.

Pouco depois o sorriso era, somente, um esboço. Maldito sejas. Nessa altura pensaram que seriam coisas da idade, como se a idade fosse, por si só, uma justificação para todas as mudanças de personalidade.

Nesse período, sentava-me no baloiço do jardim ao anoitecer e lá queria estar, agora. A brisa nocturna sempre de embalou, tanto nessa altura, tanto na altura em que fugia de ti, como agora…

As mudanças nunca foram boas, não para mim. Ouvia as raparigas falar das alterações corporais com que estavam a ser contempladas, na época em que desfilavam pela massa popular permitindo que todos se apercebessem disso mesmo. Como era possível sentirem, uma pitada sequer, de orgulho nisso?!
A minha indumentária era inoportuna à sociedade em que, supostamente, estava inserida mas tão adequada à realidade que me prendia ao tormento continuo: vestia as calças de ganga de toda a semana, a camisola XL azul que estava pousada em cima da cama e, quando muito, alternava com a preta que estava dobrada e arrumada ao fundo do armário. A marginalização urbana deste facto era de uma crueldade evidente, no entanto as regras de boa educação impostas não deixavam espaço para um prolongamento agravado da situação. E era exactamente isso que esperava, era essa a minha esperança. Esperança de manter um perímetro de segurança mínimo, esperança de te repelir com o meu modo sujo, dentes amarelados e cabelo desalinhado. Maldito sejas, nem disso querias saber.

(…)


Pelos 16 anos ofereceste-me um vestido, que rasguei com as poucas forças que tinha, disseste que a minha beleza merecia melhor que as minhas velhas e sujas calças de ganga. Passados dois dias a médica da escola perguntou-me porque razão tinha eu todas aquelas nódoas negras e, nessa altura, pensei o quão bom era ela não poder ver as mazelas que transportava, diariamente, na alma. Lá se imaginava que a filha do Senhor Doutor Américo Ferraz pudesse carregar um pingo de desconforto que fosse? Nem pensar.

(…)

Descobri um novo refúgio: passear-me de rua em rua. No entanto, durante o dia teria de o fazer cabisbaixa, não me era suportável cruzar o olhar com a multidão que ecoava estridentemente na minha cabeça - aquelas risadas eram desprezíveis. Portanto, passava apressada nas horas de movimento e deixava-me pernoitar, em cada banco a respirar daquela brisa, ao anoitecer.

Numa dessas noites vislumbrei, pela primeira vez, o teu rosto e, sentindo-me como que abalada por uma congelação súbita, observei o teu sorriso. E mesmo agora, às 3:13 da manhã e passados todos estes anos, recordo cada traço desse momento e ainda sinto o arrepio pelo corpo.

E, sensivelmente, por essa altura as coisas acalmaram. Os passos pelo corredor não eram tão frequentes, a porta destrancada do meu quarto não era aberta a meio da noite, as nódoas negras de contestação estavam a sarar e não havia indícios de renovação, não para breve.
Podia baloiçar-me noite dentro, esperar novo deslumbramento contido ao ver-te e continuar a baloiçar-me até ao raiar do dia.

Nem sempre aparecias, é um dado certo, e quando o fazias vinhas acompanhado. Uma companhia diferente de todas as vezes, o mesmo sorriso de todas as vezes. Aos tropeções, saias do teu carro, tropeçavas mais um pouco, dirigindo-te à entrada de casa, enquanto a afortunada dessa noite te seguia os passos dando gargalhadas embriagadas.
Decorei todos os traços que me eram possíveis decorar àquela distância e com tão pouca luminosidade, mas sabia-os tão bem. Imaginei a tua voz vezes sem conta, concebi a tua personalidade carismática e formei o nosso diálogo repetidamente, aquele que teríamos quando acordasse na tua cabeceira. Tudo o que tinha perfeita consciência não se vir a tornar realidade.


No decorrer desses sete meses, chegou mesmo a haver uma altura em que pensei que tudo iria passar, tudo iria acabar mas, como em sonhos que idealizados, realizados e, repentinamente, se tornam mal sucedidos ao acordar do novo dia, não passavam de desejos profundos de libertação.

(...)




Mais uma história para o fórum criticar e, desde já, peço desculpa por algum erro ortográfico que possam encontrar e pelo incorrecto uso da pontuação - que, garantidamente, irão encontrar - mas nós nunca nos demos muito bem :p
 

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Gostei da história, acho que tem muito por onde desenrolar :p
Espero uma continuação eheh
 

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Obrigada, tenciono colocar continuação.
Depois logo me dirão o que acham do desenvolvimento :)
 

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Agora que penso realmente no assunto apercebo-me da intensidade que uma fantasia pode proporcionar numa mente fatigada. Proporcionou momentos de ruptura com o que me envolvia e permitia que o decorrer temporal acelerasse proporcional à necessidade de emancipação. Mas ainda nada estava resolvido, ainda nada se tinha alterado drasticamente e voltaste, maldito sejas.

- Precisas dormir, reviver tudo isto não te vai fortalecer, sabe-lo bem. – disse-o , em voz baixa e recatada. Sabia reconhecer quando ela estava a chegar ao limite das suas forças.
-Tens razão, vou deitar-me. Ainda ficas mais um pouco? – perguntei, sem interesse, ao mesmo tempo que saia da sala e o deixava para trás.
- Fico, minha querida... Fico à espera que adormeças para, seguidamente, puder fruir da energia que tem vindo a brotar em ti. – murmurou em tom inaudível.


(…)


Arrastei-me até à entrada do quarto e parei, com intenção de provocar o menor ruído ao abrir a porta - Tric – o som da abertura de portas ainda me fazia estremecer. Entrei de olhos cerrados devido ao luar que preenchia o quarto. O espelho, ao fundo do quarto, reluzia toda essa luz como que em chamamento.

Aproximei-me o suficiente para conseguir distinguir todas as minhas feições. Uma mulher de estatura média, cabelos soltos pelos ombros e olhar indistinto apresentava-se à minha frente. Passei as mãos pelo rosto e senti a pele quente e aveludada. Voltei a olhar-me no reflexo enquanto despia a camisa de algodão engomada pela manhã e desabotoava as calças azuis, de ganga. Deixei-me ficar. A imagem de uma rapariga outrora sombria, tinha dado lugar a uma mulher de aspecto robusto que se sabia orientar pelas trilhas da vida. Sabia o que tinha de ser feito, não sairias ileso.

Virando as costas, num movimento seco, envolveu-se nos cobertores da cama e ali se deixou adormecer, aninhada sobre si própria.


(…)


Pouco tardou até ele entrar no quarto. Sabia que não podia executar nenhuma deslocação brusca pois corria o risco de despertar Anabela do seu leve sono. Permaneceu junto à cama durante, o que lhe pareceu, cerca de uma hora até que se deixou vencer pelo cansaço, o que lhe permitiu cair aos pés da cama, sem nunca tirar os olhos dela.
- Não deixarei que se repita, não deixarei… - pronunciou, antes de ser derrubado pela exaustão e dormir as últimas horas que a madrugada ainda permitia.


(…)


Os primeiros raios de sol incidiram no chão claro do quarto e eu não pude deixar de seguir os seus aumentos graduais. Miguel continuava a dormitar aos pés da cama, com a mesma roupa que envergava no dia anterior. Levantei-me calmamente, passei por ele e especulei em que sonho estaria ele, naquele momento, a vaguear. Não cheguei a conclusão alguma, limitei-me a beijar-lhe a testa suavemente e sair do quarto.

O relógio da cozinha marcava as 6:49 o que significava que, se me despachasse, ainda teria tempo para passar nos escritórios dos investigadores e saber se havia mais alguma novidade do Dr. Ferraz.
- Vale a pena tentar. – incentivei-me.


(...)



Nos 20 minutos que se seguiram, tomei um banho rápido, degluti um pão embebido no café acabado de fazer e bati a porta do carro. Miguel manteve-se no quarto.

Conduzi em modo automático pelas ruas ainda desertas, enquanto saltitava a conversa da última noite, na minha cabeça. Eu sabia que devia continuar a reviver todas aquelas recordações, precisava de manter aquela revolta acesa em mim para continuar esta jornada, embora soubesse que um dia as minhas forças iriam acabar e aí… oh, aí esperava ter Miguel por perto porque não aguentava mais uma queda desamparada.
- Eu sei que lá estarás, nessa altura, como sempre o fizeste. – segredei ao estacionar o automóvel.

O velho edifício cinzento mantinha-se imponente no passar dos séculos e lá estavam instalados, agora, o grupo de investigadores mais reconhecido do país.
Entrei de rompante, dirigi-me à secretaria-geral onde me comunicaram que a Inspectora Costa não se encontrava nas instalações.
- Pedimos desculpa pela demora no desenrolar do processo, Dra. Ferraz, tentaremos encontrar um desenvolvimento para o processo e, assim que tal aconteça, entraremos em contacto consigo. – comunicou a mulher.
- Com certeza, eu continuarei a aguardar… com licença.


(…)


Não desesperes, pensava para comigo, não desesperes. Eles vão encontrá-lo e irão faze-lo pagar por tudo, não desesperes. Respirei fundo 4 vezes, introduzi a chave na ignição e retomei a marcha.


(...)


Continuação. Espero que gostem, a mim pelo menos, está a dar gozo faze-la . :)
 

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Obrigada pelo incentivo ;)
Assim que der continuidade ao romance , deixa-lo-ei aqui .
 

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Realmente....escreves de uma maneira muito....não sei dizer...
 

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esxperimenta publicar um livro:p


agora a serio está muito boa
 

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Guest
Muito boa a história. Cativou legal o público aqui hein? :p
 
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